sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Entrevista: Vitor Silva Tavares, &Etc

A entrevista abaixo parte de um trabalho jornalístico de Alexandra Lucas Coelho, intitulado “Resistência é a palavra”, que foi publicado no suplemento P2 do Público, a 16.07.2007.
Dada a extensão desta entrevista a Vitor Silva Tavares, da &Etc, iremos publicá-la em duas partes.


A editora que Vítor Silva Tavares fundou como “uma aventura poética”, a & etc, vai fazer 35 anos. E ele faz 70 anos a 17/07/2007. Os números também são beleza e harmonia. O acaso não é por acaso. Tem publicado centenas de autores que, tal como ele, nunca ganharam um tostão com isso. Ética e estética, diz um dos seus autores-irmãos, Alberto Pimenta.

É lisboeta “pardal”, de palmilhar a cidade a pé. Foi miúdo descalço na Madragoa, uma pobreza de se pôr o relógio no prego para haver sopa de hortaliça numa casa com 13 pessoas. É nessa casa que continua a viver, e o relógio ainda lá está.

Entre o prego e 2007, as aventuras dão para uma conversa que não acaba, a que ele vai tendo com os próximos, sem pensar em escrever memórias. A sua escola de jornalismo, muito antes do “Diário de Lisboa”, é a do “Intransigente”, de Benguela, onde também foi inspector de cartas de condução sem saber conduzir e mudou os nomes todas da cidade numa noite de subversão, o que lhe valeu ter um agente da PIDE à perna, de seu nome Delgado.

Partiu de Angola em risco de ser preso, deixando um 45 rotações de Mahalia Jackson a um contratado do interior que o levou para onde nunca mais terá sido ouvido.

De volta a Lisboa, distribuiu colaborações pelos jornais enquanto, ateu dos quatro costados, pintava Cristos que um “manager” vendia a conventos. Não sabe por onde andará essa extensa obra pictórica.

Depois convidaram-no a dirigir a editora Ulisseia, onde começou a publicar surrealistas portugueses, “nouveau roman” francês e obra de muita indignação para a censura. Os livros eram apreendidos, mas aparentemente a Ulisseia era mesmo para dar prejuízo ao dono, a Abel Pereira da Fonseca.
Gosta de coisas tão antigas como letras de tipografia e histórias a circular pela boca. De fazer coisas porque apetece, e porque tem de ser, e porque é assim. A porta aberta é para entrar e para sair, o importante é que esteja aberta.

Na & etc não há lucros e há livros quando houver. Tem havido regularmente, e cá estão eles a toda a volta deste subterrâneo com pátio de azulejo antigo e escadinha de ferro, ali onde o Bairro Alto cola com a Bica, muito lisboeta.

Tudo já aconteceu aqui, até quase um parto. Não há computadores e a secretária é a mesma que o senhorio ofereceu no dia em que o subterrâneo foi alugado. Vinha a calhar para este título, que começou por estar no primeiro livro de Vítor Silva Tavares publicado em Angola, “Hot & etc”, depois passou a ser um magazine do “Jornal do Fundão”, uma revista e enfim uma editora. Por ter começado como magazine é que Vítor Silva Tavares lhe chama sempre “o etc”, no masculino. Hoje, centenas de livros diferentes, que parecem quadrados, e todos juntos são uma bela, longa, aventura.

Horas de conversa, em que ainda antes da primeira pergunta a jornalista abandonou o guião. A gravação começa com Vítor Silva Tavares a contar como começou a & etc.

Partimos da mais rigorosa e total independência, só tendo em cima de nós a vigilância censória, o que a censura cortava. Mas nós não cortávamos. Não havia censura interna, nenhuma. E não era, como agora se diz, “vamos ter um projecto”, não senhora. Entrámos a fazer o etc exactamente como uma aventura poética, interligando desde logo a intervenção artística, cultural, com as nossas próprias vidas. Viver poeticamente através de uma folheca, ou de livrinhos, mas viver a nossa própria vidinha.

Talvez isso nos ajudasse a dar algum sentido, alguma alegria a um país em absoluto pardacento que não apetecia. Hoje não sei se apetece muito, na altura não apetecia nada.

E, portanto, dúzia e meia de malucos atirámo-nos para isto.

E já colaboraram no etc, desde que ele nasceu, largas centenas de escritores, tradutores, pintores, ilustradores, que jamais tiraram daqui um cêntimo. A editora é totalmente independente. Nunca pediu nem à Secretaria de Estado da Cultura, nem às fundações, nada. Vive dos livrinhos que fazemos e pomos nas livrarias, e as tiragens são muito pequenas...

Entre 400 e 500?

Não!!! Menos! Ui! Isso era um “best seller”. A gente faz 300 e em casos excepcionais 350, nunca mais.
Não houve uma altura em que fazia entre 400 e 500?

Houve. Na parte dos senhores leitores houve também mutações. É preciso ver que, quando o etc arranca, o Maio de 68 está perto.

Está a referir-se ao & etc no “Jornal do Fundão”, para si esse é o princípio.

Sim, o etc arranca como um magazine do “Jornal do Fundão” [que tivera o seu suplemento de cultura censurado].

A ideia era esta: se o jornal reaparecer com uma folha que diz “Artes e Letras, Suplemento Cultural”, o que quer que seja, é um convite que estamos a fazer à censura para cortar “ab ovo” a intervenção cultural dentro do “Jornal do Fundão”. Logo, vamos lateralizar a questão. Vamos chamar-lhe magazine, recuperando a velha ideia dos magazines, um bocadinho de cada coisa, o que já tem a ver com o nome.

E aí há um cruzamento de coisas curiosas. Não íamos fazer um suplemento cultural académico, tal qual se faziam antes, um pouco de música, um pouco de cinema, um pouco de artes plásticas, o crítico tal debruça-se sobre não sei quê. Não era por aí que íamos, nem fomos.

Quando fala no plural está a falar de quem?

O “nós”, aqui, era sobretudo eu e o José Cardoso Pires. De início, “ab ovo”. A coisa nasceu assim. O António Paulouro [director do “Jornal do Fundão], o José Cardoso Pires e eu, que era uma espécie de homem de mão, colaborador assíduo do Zé. Escrevíamos coisas a quatro mãos, e etc.

Como conheceu o José Cardoso Pires?

Eu tinha vindo lá das Áfricas, em parte do jornalismo, no tal jornal “O Intransigente”, de Benguela, posto que tivesse outras profissões, fui para lá um aventureiro. E chego a Lisboa com a determinação, desse lá por onde desse, de nunca mais servir qualquer patrão ou fazer aquilo que não queria, de que não gostasse. Nunca mais. Disse o corvo e disse o Vítor. Pronto.

E regressei portanto para a minha função de pardal, que sou lisboeta tipo pardal. E para subsistir escrevia indistintamente ou contarelos para o “Diário Popular” ou pequenos textos para a “Crónica Feminina” ou crítica de cinema para a “Flama”, ou crítica de cinema para o então “Jornal de Letras e Artes”. E comecei a dizer “não” a uma quantidade de coisas. Empregos, por exemplo, publicidade: “jamais de la vie”. Não era comigo. E andava assim em pardal, saltitando daqui para acolá, palmilhando Lisboa como hoje – sou pedestre –, quando aparece uma proposta que era nem mais nem menos que ir dirigir a editora Ulisseia.
A Ulisseia!, que era a editora que eu, enquanto leitor, na altura ainda com algum dinheirito para comprar livros, mais apreciava, com direcção do Figueiredo Magalhães, que ainda é vivo. Grande editor. Não me deve chupar nem à lei da bala, porque eu é que fui suceder-lhe, digamos. Mal sabe ele a admiração que tinha por ele, e mal sabe ele que ao suceder-lhe não tive outro propósito senão garantir àquela editora o mesmo nível cultural, artístico que o velho Figueiredo Magalhães tinha dado.

Ora o José Cardoso Pires estava ligado à Ulisseia, que era a produtora dessa publicação “sui generis”, espantosa que foi o “Almanaque”.

Quando chego à Ulisseia, meti condições que não dá para acreditar, porque eu não acreditava nada que de repente trocava os cem paus, ou os noventa paus, que me pagava o “Diário Popular” por uma colaboração, e de repente estava à frente, como director editorial, de uma editora como a Ulisseia. Era demais. Então disse: “Só entro se...”

Como é que essa hipótese apareceu?

O Figueiredo Magalhães tinha saído, a Ulisseia tinha ficado sem cabeça, e tinha-se arrastado um determinado período, dependendo de uma casa gráfica, a Casa Portuguesa, que executava os livros e atirava todo o passivo para a Ulisseia. Quem era o dono disso tudo? A Abel Pereira da Fonseca! Batatas, azeitinho, vinho a martelo! E alguém ligado à administração da Abel Pereira da Fonseca, conhecendo a irmã da Edite Soeiro [jornalista com quem VST trabalhara em Angola], perguntou: “Não haverá por aí alguém?”, e tal. E foi essa irmã, ou a própria Edite que disse: “Há um tipo que gosta muito de ler.” Disseram que eu tinha uma grande cultura literária, que também me interessava muito pelas artes plásticas. Naquela altura eu era um rapaz culto, e como tal capaz de estar à altura de – lá devem ter dito.

Foi em 1959 para Angola. Quantos anos ficou?
Três, que contaram para 30. Fui para lá ainda todo mocidade portuguesa. não haver racismo...
Portanto voltou a Portugal em 1962.

Sim, e [antes de aparecer o convite para a Ulisseia] ando por aí a distribuir colaborações, assim e assado. Tendo algum jeito para as pinturices tive um “manager” que estava ligado a uns conventos.
A uns conventos?

À padralhada. De modo que acabei por pintar a lápis de óleo e em tela ou cartão ou madeira uma quantidade de Cristos que o “manager” se encarregava de vender, e dar-me depois uns cobres, como “o artista”. De modo que eu distribuía-me entre literato, escrevendo para os jornais crónicas ou contos, mas também fazendo uma perninha nas artes plásticas, digamos assim. Eu que sou completamente ateu.

Eram umas trombas de um Cristo muito mal disposto, a sofrer muito, e os padres gostavam desse sofrimento.

Onde é que acabavam essas suas obras?

Nem sei onde é que está essa merda! Deve estar lá pelos conventos. Ainda fiz umas dúzias.

Conventos de alguma ordem específica?

Sim, sim, das ordens. Uma não sei quê de Benfica.

Os Dominicanos?

Talvez, quem tratava disso não era eu, era o “manager”.

De modo que não acreditei [no convite para a direcção da Ulisseia] e fiz exigências]: separação completa da tal Casa Portuguesa, autonomia completa quer na Direcção Editorial quer na Direcção Administrativa, salário altíssimo... O convite foi em Outubro e já sabia que a editora estava tão mal que os donos não iam sequer pagar subsídio de Natal. Não senhor: “Não vai ninguém para a rua, senão não entro, e subsídio de Natal para toda a gente. E é pegar ou largar.”

A proposta devia ser de tal modo insólita, mesmo nessa altura, que o velho dono daquilo teve curiosidade em saber quem era o energúmeno. Vou ter com o homem, que seria dos mais ricos de Portugal...
O tal da Abel Pereira da Fonseca.

Sim senhora, de seu nome Manuel Correia — não sei se ainda é vivo —, que creio que nunca leu um livro, a não ser talvez o José Vilhena, e de teatro deve ter ido ver a Laura Alves. Homem já velho, de cabelo branco, acaba por ter comigo e com a Edite um tratamento como se fosse nosso pai ou nosso avô. Porque eu disse: “Mas eu lá de finanças, de organização, de coisas administrativas não percebo a ponta de um chavelho.” Para isso, estava a Edite, a sua disciplina, a sua capacidade de trabalho espantosa, e eu podia andar por aí. Também não me via como editor sentado, nem pensar. A Edite toda formiguinha e eu todo cigarra.

E assim foi.

O homem cumpriu totalmente. O único receio que ele tinha é que eu viesse a ser preso pela PIDE, dado que durante os dois, ou três ou quatro anos que lá estive nem faz ideia da quantidade de livros que publiquei e que a PIDE apreendeu.

O que é que publicou?

Ena pá! Fiz o gosto ao dedo. Fundei uma colecção muito bonita, ainda hoje gosto muito dela, “Poesia e Ensaio”. O Magalhães tinha a colecção dos sucessos literários, com os romances; tinha a colecção dos Documentos Sociológicos e Políticos; era a Ulisseia que publicava os livros da Pelikan. Mas não tinha Poesia e Ensaio. E até nessa colecção houve logo livros apreendidos. Desde “Feira Cabisbaixa” do Alexandre O’Neill a uma antologia da poesia portuguesa do pós-Guerra, até casos mais graves. Fui eu que publiquei os “Condenados da Terra”, do Frantz Fanon, e tínhamos a guerra colonial. Esse livro servia de bíblia aos guerrilheiros ditos terroristas.

Mas o Manuel Correia nunca demontrou qualquer problema pelos livros todos que eram retirados. Não lhe interessava. Se calhar a Ulisseia até seria uma desnatadeira, sei lá.

Uma desnatadeira?

Há certas editoras ligadas a empresas muito fortes noutros campos e onde as literaturas servem para desnatar lucros. Para dar prejuízo. Há editoras a que interessa dar prejuízo. Se houver fusão de empresas, uma grande empresa com lucros hiperbólicos pode sempre desnatar através de uma editora onde à partida já não se põem grandes expectativas. É uma questão de operações contabilísticas. Desnata-se, ou descai-se. E até se pode ganhar alguma coisa em sede de IRC. Não percebo muito de finanças mas é à volta disto.

Seria um tanto enigmático porque é que a Abel Pereira da Fonseca tão interessada em vender grão de bico, vinho, azeite e batatas do Val do Rio era tão indiferente ao sucesso ou insucesso económico da editora. E era. O que me punha completamente à vontade. Começo a publicar cá, por exemplo, os autores do “nouveau roman”, Nathalie Sarraute, Claude Simon, Robert Pinget, com “O Garoto” — se aquilo vendeu 20 exemplares deve ter sido um “best seller” do caraças. Ou quando começo a chamar os surrealistas portugueses. Quem é que os publicava? Ninguém. Sou eu que vou publicar o primeiro livro do Luiz Pacheco, “Crítica de Circunstância”. E trás, cai lá a PIDE, pumba, o livro é apreendido.

Nas traduções, quem tinha?

Ia desde a Luiza Neto Jorge, só vendo livro a livro.

Já tinha o Manuel João Gomes?

Não. O Manuel João Gomes entra quando a Luiza conhece o Manuel João Gomes, que era muito bonito. Ela, Luiza, teve sempre uma pontaria muito grande para os seus homens, sim senhora. Aquele olhinho azul, aquilo era um olhinho certeiro. Aí, já estou no etc do Fundão. Tanto assim que sou eu que publico o primeiro texto do Manuel João Gomes. Ela apresenta-me ao menino, que parecia o Che Guevara, um misto de Cristo e Che Guevara, estava cá como relapso à tropa.

Cá?

Em Lisboa, porque ele não era de Lisboa. Tinha andado lá pelos seminários e desagua em Lisboa, refractário à tropa em tempo de guerra colonial, passando todo o tempo até ao 25 de Abril em clandestinidade aqui na Rua da Misericórdia, casa da Luiza.

Veio ao Coliseu uma companhia de circo russa, e o Manuel João Gomes escreve para o “Jornal do Fundão” um texto chamado “Alice no País dos Sovietes” – já havia nessa altura um grande interesse dele pelo Lewis Carroll. A censura cortou um bocadinho mas não o suficiente para eu não publicar. E começa aí uma colaboração muito íntima que se prolonga depois para o “Diário de Lisboa”, e para a aventura do etc. Ele foi, sem dúvida, o meu braço esquerdo, o meu braço direito. Nunca encontrei um melhor colaborador que o Manuel João, sob todos os aspectos. Tal como eu tinha uma grande ligação de amizade e admiração pela Luiza.

Aqui dentro do buraco, e isso hoje ainda se mantém, temos um tal tipo de ligações de ordem humana, de admiração, poéticas, que isso em parte explica que uma casa que não tem estruturas nenhumas, mas tem esta, e de tão longa duração, para o ano vá fazer 35 anos sem se ter desviado um milímetro que fosse da mesma maneira de estar dentro destas coisas.

Voltando ao que publicava na Ulisseia.

Raymond Queneau. “O Grupo”, da Mary McCarthy, na altura o primeiro livro de apologia do feminismo em Portugal, não sei se a PIDE o retirou. O Cesariny, claro, com “A Intervenção Surrealista”, e esse lindo livro que foi “A Cidade Queimada”, feito à mão, folhinha a folhinha, com os desenhos do Cruzeiro Seixas.
Voltando ao José Cardoso Pires, pois bem, entro para a Ulisseia, sendo eu admirador da editora do “Almanaque” e dele enquanto escritor – já tinha lido “O Anjo Ancorado”, “Os Caminheiros e Outros Contos” – e eu queria publicar a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, porque só havia uma muito bonita com edição do Adolfo Casais Monteiro, mas de certo luxo, esgotada há muito tempo. Eu tinha uma enorme admiração pelo Fernão Mendes Pinto, pelo lado aventureiro, e de quem me lembro para uma nova actualização de texto ou a apresentação? Do Pires. E entro em contacto com ele. Levei tampa, o homem tinha mais que fazer. Mas estabeleceu-se uma tal empatia, talvez também pelo meu linguajar. O Cardoso Pires era um lisboeta de adopção, adorador de Lisboa, e eu sou lisboeta da Madragoa. Por vezes a minha linguagem está ainda muito salgada.

Em que rua mora?

Rua das Madres. Toda a minha família estava ligada ao mar e ao rio. O meu bisavô materno, pescador, tinha o seu bote, o pai dele tinha vindo de Olhão, era gente lá dos Algarves. E com os outros homens – que tinham os botes e passavam o pessoal do trabalho de um lado para o outro do rio, isto quando não havia ainda cacilheiros – vai formar a Cooperativa dos Catraeiros, que em conjunto compra o primeiro cacilheiro. O meu tio-avô, filho dele, portanto, foi um dos primeiros mestres dos cacilheiros. Eu era puto.

Isso, no princípio dos anos 40.

Pr’aí. Ele a guiar e eu ao lado, ainda nem sabia quem era o Vasco da Gama, mas se soubesse ia de certeza ao lado do Vasco da Gama.
Depois, a minha pobre mãe também trabalhava como carne para canhão do lado de lá, quer nas fábricas das anchovas, num sítio chamado Olho de Boi, quer nas chamadas fábricas dos gelos, estão ainda lá os armazéns. Muitas vezes eu fazia pressão para ir com ela. Nasci em condições de muita miséria naquela casa. Fui o décimo terceiro. Parece impossível como estavam lá 12 pessoas quando eu nasci, mas estavam. Gostei muito do Pacheco e da “Comunidade”, na “Crítica de Circunstância”, por haver certos paralelismos. Lá estava a filharada do Pacheco a dormir nas gavetas da cómoda, ou em cima do papel, porque o papel é um bom condutor do calor, quando eu também, no meio do chão, no linóleo, estava ali rodeado de mãe, avó e tias.

As condições em que nasci e cresci eram tão dramáticas que isso podia ter, e de que maneira, retorcido completamente a minha psique, a minha pessoa. Isso não se deu porque fui tão protegido, gostado, apalpado, acarinhado, tão com-todos, que a minha mãe deixava-me indistintamente em casa de A. e da mulher do sapateiro.

A minha avô ia comigo à sopa dos pobres, ali aquele edifício em frente ao Parlamento, buscar a sopa e o pão escuro que muitas vezes era a base da alimentação. E há um pormenor completamente surrealista. Na casa onde ainda hoje vivo só há um objecto do que era a casa velha. É um relógio de cavalinho. Está lá na parede. É um daqueles relógios que parecem uma pequena catedral que tem um cavalinho por cima. Uma peça muito bonita que faz um cagarim doido ao tocar. Toda a gente olha para ali e diz: “É um relógio.” E eu digo: “Não senhora.” Como tenho esta costela surrealista, digo: “Aquilo que ali está na parede é uma panela de sopa.” “Uma panela de sopa?” “Tal e qual.” Porquê? Como era o único bem que havia naquela casa, o sacana do relógio semana-sim-semana-não estava no prego, que ficava na Rua da Esperança. Lá ia o relógio para o prego e nessa noite havia sopa de hortaliça com chouriço de sangue. Era uma festa. O relógio servia para isso.

A minha mãe ficou muito marcada pela memória dessa extrema miséria, porque não me pôde dar o apoio que as mães gostam de dar aos filhos.

A minha avó Arminda, por quem tenho total devoção, tinha como alcunha na Madragoa a Viúva Alegre. Acontece que a minha avó nunca casou. E era amiga íntima de uma outra chamada Rosa das Sardinhas, avó do Henrique Viana. A minha avó fazia tudo, Cantava o fado com um irmão pelas tabernas, empalhava cadeiras, cosia as velas das fragatas no Largo Vitorino Damásio... havia lá uma casa com um grande passeio em frente, onde o mulherame de gatas cozia com umas agulhas de osso e corda muito forte os remendos das fragatas... e também lavava a roupa para as vizinhas no lavadouro que ainda existe ao cimo da Travessa do Pasteleiro. É Zola. Eu saía de casa, de pé descalço, claro...

Que idade tinha a primeira vez que calçou sapatos?

Quando fui para a escola. Mas foi um problema. Sentir o pé apertado num sapato foi uma coisa terrível. Lá ia eu ter ao lavadouro sabendo que a minha avó lá estava. A minha mãe estava a trabalhar sempre noutros sítios. E então à porta do lavadouro eu gritava: “Ó Vó!” E aquele mulherame todo: “Ó Arminda, o teu neto!” E eu ia pelo ar, entre muitas beijocas, de braços em braços, zuca-zuca-zuca, até desabar no colo amplo, ancho, da minha avó, que me dava logo muitos chochos na cabeça. Muito magrinho, como sou hoje, com medo que também eu morresse, por raquitismo, subnutrição, etc.

O meu pai era trabalhador estudante e já estava a fazer as viagens dos lucros bacalhoeiros, de seis meses, no mínimo. Ia para a Gronelândia e para a Terra Nova. Logo, eu só via o meu pai de seis em seis meses. E quando começou a fazer as carreiras da Europa e da América, de três em três meses. Era sempre um pai muito distante. Eu fui criado pela família da minha mãe.

O que é que o seu pai fazia? Andava na pesca?

Não, era estudante de máquinas, e foi tirando as cadeiras até terminar a sua carreira no mar como primeiro oficial maquinista. Depois ficou em terra e foi para a Sorefame como técnico. Um “gentleman”, olhinho muito azul, bigodinho à Errol Flynn, muito namoradeiro, casado com uma Anna Magnani, que era a minha mãe, de uma frontalidade a toda a prova, um ser inteiro, sem diplomacia, e de uma rectidão total, a chamada mulher de armas. Violenta e com uma relação terrível com o meu pai, terrível do género facalhão ou mesmo um machado para lhe dar cabo da cabeça.

Por causa desse lado namoradeiro?

E porque o meu pai era muito fantasioso, para não dizer aldrabão, embora encantador. Muito bonito. E a minha mãe também. E era ela que aguentava com todo este peso, este martírio.
Eu não quis entrar para a escola, para mim era uma prisão. Tudo aquilo me metia terror. Rapaz da rua, de repente sou enfiado dentro de uma escola. Para mais, muito chique, pelo seguinte: como os meus pais eram muito novos, não eram casados quando nasci. Logo fui filho ilegítimo e como tal, quando chegou à altura de entrar para a escola, não fui aceite nas oficiais porque era ilegítimo. Então a minha mãe teve que arranjar uma escola que havia na Rua da Lapa de duas velhotas republicanas que faziam uma grande selecção, mas apiedaram-se do meu caso e aceitaram-me.

De modo que os seus colegas eram os meninos da Lapa.

Os meninos bem. E eu tenho uma quarta classe em absoluto excepcional. O meu gosto pelas literaturas vem daí. Pela simples razão que as velhotas já nos liam na aula Gomes Leal, Guerra Junqueiro...

Isso hoje é impensável.

Ainda sei de memória. Liam certos poemas de Gomes Leal, ou do Augusto Gil, e eu gostava muito. Ou do Guerra Junqueiro. “A Lágrima”, ai “A Lágrima”. E “O Melro”. “O melro, eu conheci-o”...

Mas o seu pai tinha livros, não?

Sim, o meu pai era mais culto. Quando aprendi a ler e finalmente foi possível alugar-se uma pequena casa na esquina do Rua do Meio com a Rua da Lapa, num prédio que já foi abaixo – a casa era tão pequenina que o meu pai, que tinha muito jeito de mãos, teve de fazer um beliche como nos barcos [para Vítor e o irmão que entretanto nasceu] –, passei a ser um devorador compulsivo de tudo o que era letra, desde cartazes de rua à necrologia dos jornais, e portanto devorei aquela livralhada toda [do pai], e que oscilava desde os livros do Hall Caine ao Blasco Ibañez, Stefan Zweig e os portugueses do Primeiro Realismo, Aquilino, mas também Assis Esperança, Leão Penedo, literatura de carácter mais social.

Zola também?

O “Germinal”. Quando mais tarde tive a minha primeira namorada, ela foi trabalhar para a livraria Barateira. E apetece-me dizer que li a Barateira toda por interposta namorada, isto provocando uma baralhada doida na cabeça. Um acumulador de literatura, lendo tão selvaticamente e coisas tão separadas.

Sim senhora, tirei uma quarta classe excepcional, e entro para o Pedro Nunes, que era o liceu da nata, com 18 vírgula qualquer coisa, o que deu lugar a ser chefe de turma e ir para o quadro de honra. Posto que os meus pais não tivessem dinheiro para eu estar no liceu, erro fatal. No liceu fartei-me de roubar tudo. Roubei a prancheta, os livros, tudo. Vim a ser expulso por indisciplina grave que envolveu agressão a um professor. Aquilo era um liceu fascista, embora lá estivesse também gente como o Jorge Sampaio, e alguns professores de grande qualidade, como Rómulo Carvalho, que não foi meu professor. Não tenho tendência natural de violência, de agressão, não trato mal ninguém. Mas por outro lado venho de onde venho, a minha era uma cultura de rua com a violência própria dos miúdos. De qualquer modo, eu estava ali transplantado para um universo que não era o meu. E não esquecer que já ia embalado com um tipo de leituras que cada vez mais acentuavam em mim a consciência da injustiça social. Eu lia escritores como o Ferreira de Castro e chorava de uma maneira doida, crescia dentro de mim uma revolta enorme, que nunca me passou. Só está atenuada, plasmada dentro do meu ser. É marcante para a vida.

Primeiro dia em que entro para o liceu. Dia solene. A minha mãe lá faz um esforço e compra-me uma malazita de cartão para meter lá o livro. Roupinha nova, penteou-me, risquinho ao lado e lá vou eu, em estado de terror, para o pátio. Talvez pela maneira como estava vestido, um puto qualquer começou a embirrar comigo. Dá-me uma palmada na pasta, que cai ao chão e como era de cartão, ficou amolgada. Eu disse: “Eh pá, tá quieto.” E o sacana, pás, outro murro na mala, que cai outra vez para o chão. E eu disse: “À terceira, levas.” Ele não acreditou. Foi o mal dele. Porque de onde eu vinha não se faziam ameças. Eu fiz um aviso. Deita-me outra vez a mala para o chão, e aí em um quarto de segundo já eu tinha o meu punho muito magrinho de cima para baixo na cana do nariz, tipo coice, que é infalível – o sangue espicha imediatamente e um gajo cai redondo, logo, que foi o que aconteceu. Um certo alarido e toca a sineta, para eu ir para a primeira aula. Não é que o gajo era da minha turma? Entra naquele lindo estado cheio de lenços, cheio de sangue. O professor pergunta-lhe o que foi e o cabrão diz: “Foi aquele menino.” E o professor para mim: “Entras bem.” Mais tarde, esse tipo foi para o jornalismo e para a extrema direita. Foi para o “Diário da Manhã.”

Portanto, houve ali um erro. Dado que tive uma muito boa quarta classe, a minha mãe teve a ambição natural de que eu saísse doutor e viesse a ter um bom emprego. Só que ela não tinha meios para isso.

E depois aconteceu aquilo da agressão, que foi mais por indignação pelo que o sacana do professor tinha feito a outro aluno que por minha causa. Eu era um bocado impulsivo, tinha a quem sair. E tanto assim, por ter a quem sair, o episódio da expulsão foi engraçado. A certa altura o reitor, fascista, manda lá chamar a minha mãe. E disse-lhe que ou ela me metia num reformatório, porque eu já não ia lá de outra maneira, ou então talvez uma carga de pau pudesse solucionar a questão. Recebeu como resposta o seguinte: “Se eu tivesse aqui um pau, a si é que eu lho enfiava na cabeça.” Ela que sendo tão violenta nunca me bateu.

Portanto deixa o liceu.

E vou trabalhar para uma casa no Areeiro, onde estão agora As Chaves do Areeiro, que fazia uns acessórios para automóveis. Como tinha muito jeito de mãos puseram-me a fazer em gesso uns moldes aerodinâmicos, cinematográficos. Ah, porque a minha cultura começa a ser cinematográfica. Tive tantos dias de expulsão e castigo no liceu que passava o tempo a ir para o Paris ou para o Jardim Cinema ver filmes. Até entrei para o Cineclube Imagem, que era vermelho, e tinha lá dentro o Vasco Granja, o Henrique Espírito-Santo, o José Fonseca e Costa. E houve uma altura, até, em que a PIDE prendeu a direcção toda do Cineclube Imagem.

Foi para mim uma autêntica escola, não só de cinema, mas também daquilo em que o cinema, como qualquer outra das artes, deve ter a sua função política. Isto em tempos já muito politizados. Por leituras, e depois pelo cinema, e por estes contactos, comecei a ser aquilo a que hoje se chama uma pessoa de esquerda.

Sem nunca ter pertencido ao PCP, não deixei de ser aliciado pelo PCP, e de qualquer modo era um ponto de referência, sempre. E nessas relações no decorrer da vida, nas Áfricas, quando regresso, a dirigir a Ulisseia, depois no etc do Fundão, no “Diário de Lisboa”, é natural que tivesse sofrido, nomeadamente no “Diário de Lisboa”, pressões que não vinham apenas da censura.

Muitas vezes voto no PCP e não é por causa do PCP, é por causa de mim. O que tenho a ver com o PCP? Nada. Gosto de ir votar porque a junta de freguesia é ali na Rua da Esperança, e vota-se ao domingo, e ao domingo aquilo é uma aldeia. Até os cavalheiros podem aparecer de chapéu, porque é quase tudo emigrantes, de Ovar, daqui e dacolá. Põem os seus melhores fatinhos, as esposas ou viúvas também, e é-me ternurento ver como aquela gente vai tão respeitosamente votar. Então, eu gosto de ver aquilo e também vou.

Isso explica por que vai votar....


Como vê, não é por causa da “democracia”.

Mas porque é que vota no PCP?

Sou totalmente fiel à minha condição. Não tenho qualquer ilusão sobre de onde venho, como fui sendo e agindo. E sou de tal modo fiel a isso e a convicções iniciais nunca perdidas, que posso não me interessar em particular pelo partido comunista, mas por certas ideias comunistas, mesmo aquelas que passaram primeiro pelos Bakunines, ou pelos comunistas utópicos, como o Charles Fourier, com o falanstério. Eu venho dessa família de socialistas idealistas, onde meto um certo comunismo inicial que nada tem a ver com o Estaline, se calhar nem com a revolução de Outubro, sabendo-se que a revolução de Outubro começou por assassinar os de facto socialistas, revolucionários.
Está mais próximo da minha condição e formação enquanto pessoa.

Isto tem que ver com as ideias e a minha integração num sítio.

A minha Lisboa é muito pequena. Falo dela como o meu Triângulo das Bermudas. A casa da Rua das Madres onde vejo, enquanto os arquitectos deixarem, a mesma nesga de rio que via quando era miúdo. Parece que o Norman Foster vai dar cabo disto. O tal muro de betão que uma certa Lisboa pôde fazer parar há meia dúzia de anos vai ser transferido simplesmente para o outro lado da 24 de Julho.

Aquilo é uma pequena aldeia, eu de manhã vou tomar o meu cafezinho ao mais pequeno estabelecimento do mundo, que é a Geninha, tenho lá a voz do bairro, o mulherame todo, sei logo tudo. Aquele português que lá se fala é do melhor Gil Vicente, nomeadamente as mulheres, e eu delicio-me. Reencontro aí uma língua portuguesa que é escusado estar a ler a Agustina.

Depois faço a Calçada do Combro a pé e estou na Lisboa do Chiado romântico, onde sempre trabalhei.

Isto [o subterrâneo da Rua da Emenda onde fica a & etc] ainda é Bairro Alto?

Ainda. Está confinando com a Bica, mas ainda é Bairro Alto. Andei sempre no Bairro Alto, o “Diário de Lisboa” era no Bairro Alto, a Ulisseia era no Bairro Alto. Portanto, andei sempre por aqui. E depois trabalho na Rua da Alegria, e ao pé da Mãe d’Água – olhe que nome lindo – onde começou o etc. Na velha tipografia Minerva que faz o Borda d’Água. Ora essa tipografia tem gatos, tem nespereira, porque está encostadinha ao Jardim Botânico, tem as mulherzinhas que fazem para mim as encadernações à mão, com faquinha de marfim, e eu aí estou em família, em casa. O meu circuito básico é este. Quando vou ali ao Saldanha costumo dizer que vou ao estrangeiro.

Infelizmente a Madragoa agora está sendo atacada pelos novos bárbaros. Nunca ali houve problemas de racismo, não por acaso estamos à beira da Poço dos Negros, sempre foi ali naquela zona, desde a gesta dos Descobrimentos, que tivemos íntima convivência com os pretos, ainda hoje negros de Cabo Verde, Angola, Moçambique moram ali, estão perfeitamente integrados. E os novos bárbaros vêm de não se sabe onde com os seus carros, tudo motorizado, claro, e vão para aqueles bares da D. Carlos I, da Marquês de Abrantes, das Janelas Verdes.

De qualquer modo, moro no miolo, e não se ouve nada. E podemos usufruir de um bem inestimável, que não podíamos ter em Espanha, na Inglaterra, nos States. É que nós, com todos os problemos que temos, vivemos em paz social. E se formos capazes de reflectir nisto, sem o pesadelo dos fascismos, sem essas nódoas, podemos na nossa cidade ter momentos de prazer de vida.

Porque usufruimos desse bem inestimável que é a paz social. Se quisermos, a maior conquista de Abril são as dosagens de liberdade que cada um pode conquistar e fruir com outréns.

A editora tem a idade da revolução. Como é que deste subterrâneo olha para o país que temos agora?

Nos primeiros tempos após o 25 de Abril, vivemos com muita emoção, paixão, subjectivismo, mas foi como que um alívio colectivo, como se o ar de repente fosse inoculado de oxigénio. De repente houve oxigénio. Outra maneira de estarmos nas ruas, de falarmos uns com os outros. Houve uma euforia. A liberdade foi afrodisíaca, embebedou, fez nascer muita criançada, por já se poder nascer em liberdade. Esteve para nascer aqui um filhinho do Jorge Fallorca. Não chegou a nascer por 24 horas. Eu tinha ali um divãzinho [aponta para trás das estantes de metal].

É verdade. Já não tem?

Não. O espaço foi necessário. Mas esse divã foi porreiro. Depois do 25 de Abril, como isto foi sempre uma porta aberta – aberta para quem entra e para quem sai –, havia muitas chaves espalhadas. Uma certa manhã entro aqui e vejo um escandinavo pr’aí com dois metros de altura, todo nu, muito sorridente, a dizer-me: “Bom dia.” Atravessou e foi para o pátio – há ali uma mangueira – tomar banho.

Desde quando está aqui?

Praticamente desde o 25 de Abril. Na Mãe d’Água eu subalugava meia salinha com um senhor inventor de uma chave magnética através da qual ia ganhar fortunas, porque só lá na China ia vender biliões. Como nunca vendeu nem uma é claro que o homem faliu e a certa altura já nem tinha dinheiro para pagar a metade dele.

Começo a ver anúncios nos jornais. E um dia, até foi o Paulo da Costa Domingos que viu um anúncio que dizia: um determinado espaço para escritório ou armazém ao Camões, dois contos e quinhentos. Era o que eu já estava a pagar. E telefonei. Os donos disto eram os Carvalhos da Silva, da Associação Lisbonense de Proprietários. E o senhor diz que é um espaço que ficou vago porque umas senhoras que se serviam dele para depósito e até exposição de móveis antigos, proprietárias daquele antiquário muito fino em frente à estátua do Eça, quando veio o 25 de Abril, vá lá saber-se porquê, resolveram ir tomar banho para Copacabana...

Cheguei aqui,vi umas coisas ao rés-da-rua e disse: bom, se calhar é ali em baixo, deve ser uma coisa medonha. Como o encontro era no terceiro andar, na sede, subi, e lá estava o Carvalho da Silva, proprietário dos proprietários. Fui com o Paulo e a namorada do Paulo. Nessa altura o Paulo tinha uma cabeleira deste tamanho [abre os braços], se não me engano encarnada, e a namorada uma cabeleira deste tamanho [estica os braços] e azul, vamos supor. Parecia o circo Chen a entrar por ali dentro, para o homem que estava, claro, numa secretária de torcidos e tremidos. Eu disse: “Sabe, nós somos artistas, intelectuais, fazemos uma revista de cultura.” “Ah, sim senhor, cultura.” “E da boa.” Desato a falar com o homem. “Mas não quer ir ali abaixo ver?” E vejo um pequeno teatrinho, o patiozinho, a portinha. Isto encantou-me. Disse: “Vamos já fazer o contrato.” E ele: “Já têm armários, mesas, cadeiras?” Então, esta secretária foi dada logo no primeiro dia pelo senhorio, que não só deu a secretária como andou comigo com ela às costas do terceiro andar cá para baixo. Portanto, óptimas relações com o senhorio, que depois do 25 de Abril até era do CDS. Ele no CDS a fazer propaganda ali no Chiado, eu passo. “A si não lhe dou”, diz ele. “Não dá? Faça favor, ponha já aqui o autocolante.” Pás, autocolante do CDS na lapela do meu casaco. Viro a outra lapela: MRPP, PCP, e tal. “Está a ver, entre nós os dois o verdadeiro democrata sou eu.”

E agora quem são os senhorios?

É o irmão, com quem me dou muito bem também.

Quanto paga de renda?

O etc aguenta-se desta maneira porque os gastos são poucos. Uma renda que anda por volta dos 40 e tal contos. Não tenho, como vê, computadores, nada disso, porque não preciso. Com as pessoas com quem trabalho as relações são sempre muito pessoais. O Olímpio [Ferreira] é quem trabalha com os computadores, compõe os livros, trabalha comigo nas capas. Pagamos a luz, que não é muita, o telefone fixo e impostos.

Não há salário nenhum?

Ninguém tem salário. Tudo quanto tenho, porque comecei a trabalhar muito cedo – antes de ir para África, trabalhava numa grande casa de material cirúrgico, e como era o mais puto enfiaram-me como estabalecimentos a Cadeia Penitenciária de Lisboa, os Hospitais Psiquiátricos, Júlio de Matos e Miguel Bombarda e a Ortopedia de São José... –, mercê dos pagamentos à segurança social hoje usufruo de uma pensão de 250 euros. A casa onde vivo é minha, sou apoiado, como sempre fui desde miúdo. E é por causa destas circunstâncias materiais que o etc se pode dar ao luxo de ser um luxo. De poder continuar a funcionar completamente à margem da engrenagem das indústrias e comércios editoriais. O etc não percisa de “marketing”, porque quem faz 300 livros não precisa de “marketing”.

Ao profissionais propriamente ditos, pago sim senhor, pago religiosamente a tipografia, não tenho uma dívida à praça,. Não devo um tostão ao banco. O meu banco é a tipografia Minerva. Porque se eu disser: “Ó senhor Gomes, faça-me mil livros”, ele faz. Ou: “São cinco livros”, e ele faz. Porque sabe de ciência certa e cega que o senhor Vítor jamais deixaria de pagar um cêntimo àquela casa. Portanto esse trabalho é pago, claro.

Ao fim e ao cabo os autores que para aqui mandam os seus originais, também os mandam porque sabem que seria um horror se graças ao trabalho artístico ou intelectual estivesse eu com o meu popó. Eles sabem de ciência certa que não é isso. O projecto do etc não passou desde o início por irmos fazer lucro. E sempre foi dito que no caso de termos algum lucrozito era para meter num novo livrito, e assim sempre.
(…)


(Continua na próxima sexta-feira)